Os crioulos portugueses no Oriente
O Século XVII foi a época da consolidação de uma nova ordem europeia no domínio do Mundo cujo exclusivo - ditado em Tordesilhas - deixou de pertencer aos países ibéricos e, em várias partes, foi derrubado e substituído pelo domínio de holandeses, ingleses e franceses.
A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, além de Portugal e de Espanha, foi o resultado da perda do exercício do poder central europeu pela autoridade pontifícia - que vigorava desde a queda do Império Romano - por acção da Reforma iniciada com Martim Lutero.
A transferência de domínios entre países europeus – de Portugal católico para a Holanda protestante, principalmente - constituiu o pano de fundo em que emergiram as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente.
Com a substituição da dominação portuguesa pela holandesa, permanecendo nas terras que as viram nascer, deportadas para outras paragens, ou forçadas à emigração, essas comunidades mestiças talharam a sua identidade própria que perdurou até aos nossos dias, assente em dois pilares principais: a religião católica e a língua crioula.
A religião católica fora trazida pelos portugueses, directamente de Portugal ou através de Goa – a Roma do Oriente. Convertidos ou nascidos nela, com ela haveriam de morrer, geração após geração. A sua língua – o crioulo - era a língua portuguesa na formulação que lhe garantira o estatuto de língua franca no litoral da Ásia e da Oceania, desde o Século XVI até à sua substituição pelo inglês, no Século XIX. Holandeses, ingleses, dinamarqueses e franceses não podiam prescindir de um “língoa” [intérprete] a bordo para poderem comerciar nos portos do Oriente, na língua que era - nada mais, nada menos – aquela que as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente falavam e, muitas delas, ainda falam. Tratados, entre esses países europeus e poderes locais, foram firmados nessa mesma língua, por ser a única a que os europeus podiam recorrer para comunicar no Oriente, ainda que contra os interesses portugueses.
Ainda hoje, em muitas partes deste lado do Mundo, “Cristão” [Kristang] e “Português” [Portugis] são sinónimos.
A forte identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente cimentou-se em grande parte na adversidade. O conflito religioso nascido na Europa, entre católicos e protestantes, ramificou-se por todas as paragens do Oriente onde o poderio holandês se firmou. A profanação e a destruição de igrejas e mosteiros, a expulsão dos padres, a proibição de qualquer acto de culto católico, as deportações maciças, a redução de muitos à condição de escravos, compeliram os membros dessas cristandades à clandestinidade e à emigração: Macau, Índia, Insulíndia, Sião e Indochina foram os seus destinos principais.
Os que teimavam em ficar, escondidos em suas casas ou refugiados nas florestas, celebravam como podiam os actos de culto da religião católica. Sem padres e sem igrejas, organizaram-se em irmandades clandestinas que, ao fim de décadas, produziram fenómenos de cristalização cultural, de natureza religiosa - e linguística – que impediriam, por séculos, a sua plena integração nas paróquias criadas posteriormente. Tais irmandades permaneceram até aos nossos dias e conservam determinadas prerrogativas que limitam a autoridade dos párocos, o que é visível em algumas celebrações onde os sacerdotes se limitam à Eucaristia e à Confissão dos fiéis porque, em tudo o mais, quem manda é a Irmandade.
À medida que a dominação holandesa foi sendo substituída pela inglesa, as Comunidades Crioulas Lusófonas do Oriente foram ficando menos oprimidas e, em alguns casos, foram as próprias autoridades coloniais britânicas a tomar a iniciativa de lhes facultar padres portugueses. Perdida a confiança que a Santa Sé depositara desde o Século XV em Sua Magestade Fidelíssima o Rei de Portugal, na sequência do corte de relações diplomáticas por iniciativa do Governo liberal em 1833 e a extinção das ordens religiosas por decreto de 31 de Maio de 1834, o Padroado Português do Oriente sofreu um golpe mortal, na Índia, no Ceilão - hoje Sri-Lanka -, no Sudeste Asiático, na China e na Oceania. Permanecendo - os que podiam - nas suas missões, os missionários religiosos do Padroado não seriam substituídos pelos seus confrades. O clero secular de Goa, numeroso e bem preparado, acorria em socorro das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente que iam ficando sem religiosos. Quase sempre em vão. Os missionários da Propaganda Fidae e das Missions Étrangères de Paris já as ocupavam e os respectivos vigários apostólicos impediam-lhes o exercício do seu múnus. A expansão missionária francesa no Oriente começara ainda no século XVII.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente - gente simples e temente a Deus - mantidas na ignorância dos conflitos entre Portugal e a Santa Sé, lutaram anos sem fim contra as novas autoridades eclesiásticas com quem conflituavam abertamente e às quais consideravam estrangeiras. Durante décadas pagaram o elevado preço de lhes serem recusados os sacramentos a que só esporadicamente tinham acesso quando aportava um navio com um sacerdote, ainda que espanhol. Clamaram sempre pelo envio de clero. De Portugal, de Goa ou de Macau. Em vão.
A firme identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, ainda hoje, evita o casamento dos seus membros com indivíduos exteriores a elas e prefere que os futuros cônjuges provenham do seu seio ou de outras cristandades, ainda que distantes. Quando assim não acontece e o casamento une um membro da Comunidade a alguém que a ela não pertence, a regra é a conversão deste à religião católica e a aprendizagem da língua crioula.
Algumas dessas comunidades desfrutam de um status social positivo nos países onde vivem. Outras, porém, são socialmente desqualificadas e os seus membros são depreciativamente designados por “negros”, apesar da sua côr mais clara - da pele, do cabelo e dos olhos - relativamente aos naturais com outras origens étnicas.
A nível individual, nos países onde vivem, podem encontrar-se membros originários destas comunidades nos mais elevados estratos da sociedade: do mundo da política à actividade empresarial próspera, nas mais elevadas funções da hierarquia eclesiástica ou simples párocos de aldeia. Onde se verifique a existência de uma significativa percentagem de membros destas comunidades no clero católico, isso parece resultar da intensa discriminação de que são objecto no acesso ao ensino público e ao mercado de trabalho – público e privado. Em geral, dedicam-se a actividades modestas. São pequenos proprietários, simples trabalhadores agrícolas ou pescadores.
Embora omitindo algumas - que se acrescentam entre parêntesis - Leite de Vasconcelos, em 1901, como ensina Baltasar Lopes da Silva no seu “Dialecto Crioulo de Cabo Verde”, estabeleceu um quadro do que chamou “dialectos ultramarinos do português”:
Em África: Cabo Verde, Guiné-Bissau, S. Tomé, Príncipe e Ano Bom.
No Oriente: Diu, Damão, Mangalor, Cananor, Mahé, Cochim, [Bombaim e Negappattinam], na Índia; Ceilão [Batticaloa, Trincomalee, Puttalam]; Macau [Hong Kong e Xangai onde se extinguiu em 1949/50]; Java [Tugu e Brestagi], próximo de Jacarta; Malaca [Alor Star, Penang, Perak, Kuala Lumpur, Seremban e Johor Baru, na Malásia] e Singapura.
Mas a língua crioula falou-se também nas Cristandades Crioulas Lusófonas da Tailândia – Ayutia e, posteriormente, Bangkok - até aos anos 50 do Século XX, onde permanecem vocábulos de uso corrente no relacionamento familiar e nas práticas da religião católica. Na Indonésia, além de Java, na ilha das Flores [Larantuka e Sikka], nas ilhas de Ternate e Tidore e em Bali. Em Timor [Lifau e Bidau]. No Bangladesh - Chittagong e Dhaka – até aos anos 20 do século XX era muito viva a presença da língua crioula nas Cristandades locais. Numa breve e recente passagem de poucas horas em Dacca pude certificar-me da existência de vocabulário crioulo entre os católicos locais.
A pequena Cristandade Crioula Lusófona de Korlai [junto a Chaúl], na Índia, somente em 1982 seria revelada ao Mundo pelo etnólogo romeno Laurentiu Theban. O seu crioulo é designado por Kristi.
A Cristandade Crioula Lusófona da Birmânia – Myanmar actualmente – já não usa a língua crioula e, ao contrário das demais, perdeu com o tempo os próprios nomes e apelidos cristãos, apesar de permanecer fiél à religião católica.
Com a descolonização das antigas colónias portuguesas de África foi restituído aos seus povos o direito de decidirem sobre as suas línguas nacionais. Em todas elas o português foi adoptado como língua oficial, ao mesmo tempo que se reconheceu expontânea dignidade às línguas maternas dos seus povos.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, substituído o domínio português, permaneceram sob domínio colonial europeu que as hostilizava ou, pelo menos, não dignificava. Assim permaneceram até à independência dos países em que se encontram, onde constituem minorias com reputação variável em cada um deles. Por naturais razões de unidade do Estado, esses países mantiveram como língua oficial o inglês – a língua do último colonizador – e privilegiam uma das suas línguas como língua nacional.
O poder colonial inglês não descolonizou as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, no sentido de restituir dignidade à sua identidade, de que a língua crioula faz parte integrante, o que, aliás, não era de esperar. Nem é de esperar que os poderes pós-coloniais de motu proprio venham a dedicar-lhes a atenção a que têm direito.
A incapacidade de Portugal nesta matéria tem sido uma evidência secular, filha da ignorância e do preconceito.
Em Janeiro de 1996, teve lugar em Malaca uma Conferência sobre “O Renascimento do Papiá-Cristão e o Desenvolvimento do Património Malaco-Português”, a que tive a honra de presidir na qualidade de Adido Cultural da Embaixada de Portugal, a convite da respectiva Comissão Organizadora.
Entre as comunicações apresentadas, abordaram-se temas da maior importância:
as dificuldades para os pescadores que representam cerca de 30% da Comunidade, em consequência dos planos de desenvolvimento local prevendo extensos aterros;
o estudo, então em curso, para avaliação do número de falantes do Crioulo [Kristang] e necessidades para o respectivo ensino;
o crescente interesse da população estudantil da Malásia, espelhado em teses universitárias versando a influência do Português sobre o Malaio e de docentes universitários daquele país empenhados em trabalhos de investigação sobre o Papiá-Cristão;
a sumariação dos crioulos existentes no mundo, seus diferentes estatutos, intercâmbio dos seus falantes para troca de experiências, inventário das respectivas necessidades, modos de entreajuda e internacionalização desse património comum espalhado por vários países;
a complexidade do sistema educativo da Malásia em que coexistem várias línguas e que permite a inclusão de qualquer idioma – incluindo o Papiá-Cristão e o Português padrão – mediante requerimento de quinze pais ou encarregados de educação, etc.
Expressa ou implicitamente os oradores apelaram ao apoio de Portugal e das Fundações Portuguesas. Estávamos no início do ano de 1996. Uma das dez conclusões da Conferência consistiu no pedido de avaliação das possibilidades de ligação das Comunidades Crioulas Lusófonas do Oriente à Comunidade de Povos de Língua Portuguesa (CPLP). Outra propunha que Portugal viabilizasse a organização de um pavilhão das Comunidades Crioulas Lusófonas do Oriente na EXPO 98. Tudo foi transmitido ao Governo português pelos canais habituais. A primeira resposta recebida enviava o preçário para arrendamento dos pavilhões! Insistiu-se através de nova diligência procurando explicar melhor o sentido e alcance do que se pretendia. A resposta foi a de que cada Comunidade deveria diligenciar a sua inclusão nas representações dos respectivos países à EXPO 98, o que encerrou definitivamente o assunto.
Como me referiu o Arcebispo Emérito de Mandalay, na Birmânia, U Than Aung - descendente de portugueses - onde a maioria do clero católico é de origem portuguesa e cuja Comunidade tem as suas origens na cidade de Pegú no ano de 1600, quem nunca recebeu a mais ténue manifestação de solidariedade de Portugal nada tem a esperar daí.
Na verdade, o que poderão as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente esperar de Portugal? Reflectindo um pouco, parece poder concluir-se que:
Não rendendo votos aos partidos políticos, nem remessas de divisas como as dos lucrativos emigrantes portugueses no estrangeiro, não existe para tais cristandades um departamento governamental como existe para aqueles.
Não proporcionando negócios, nem representando quota significativa de mercado nas exportações portuguesas, não existe para elas lugar num departamento governamental semelhante aos que se dedicam à cooperação com a África ou a Europa. Não gerando receitas para o Fisco e para a Segurança Social portuguesa, nem estando a sua força de trabalho à disposição de empresários portugueses, nada existe para elas semelhante a um Alto Comissariado para as Minorias Étnicas e Imigração.
Na estrutura do Governo e da Administração em Portugal não existe espaço nem atenção para as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, porque elas não são lucrativas para os cofres do Estado Português.Ricas e poderosas instituições privadas que obtiveram o estatuto de utilidade pública, criadas com muito dinheiro levado de Macau para Portugal - em condições que não dignificaram o País - e que, em princípio, deveriam prestar atenção às Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente – não sabem onde estão, quantos são, que carências têm e as potencialidades que nelas existem.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente são, assim, comunidades de portugueses excluídos, apesar do seu forte sentimento de pertença a Portugal.
Jorge Morbey