A Portugueza e os seus mitos
A Portugueza e os seus mitos:
Na Biblioteca Nacional Digital é possível ter acesso à versão original de "A Portugueza" (1890), não deixa de fascinar ao admirar a capa da partitura onde sobressaem as cores nacionais azul e branca. Contudo, em torno da canção, depois hino nacional, prevalecem algumas dúvidas e certos mitos que aqui vou procurar explicar.
1. Hino miguelista?
Consta-se que tenha sido dedicada a D.Miguel II, então exilado na Áustria, embora não haja qualquer edição de "A Portugueza" que o comprove. Mas a suposta dedicatória a D.Miguel II pode ter uma explicação (até prova em contrário): D. Miguel II veio a Portugal incógnito, afrontando a lei da proscrição e embora a viagem fosse conhecida das autoridades e do próprio rei D. Carlos ninguém o incomodou. Ter-se-á encontrado com Alfredo Keil que por essa altura terá composto um outro hino dedicado (?) e com quem terá mantido correspondência posteriormente.
É curiosa esta ideia, que suscita tantas dúvidas, porque, de facto, Keil foi amigo do príncipe exilado, mas nunca ninguém encontrou provas de tal dedicatória. O que se supõe é que Keil tenha enviado a D. Miguel II um exemplar da “Marcha” com dedicatória, mas isto não quer dizer que a obra lhe fosse dedicada. Leia-se o livro de Maria Emilia Vasconcelos, “Miguelismo no Alto-Minho" (in, Cad. Vianenses, Viana do Castelo, 12, 1982 p 269-293 e13, 1989, p.113-137). Conta-se que, a certa altura, D. Miguel II veio a Portugal, incógnito, afrontando a lei da proscrição, e embora a viagem fosse conhecida das autoridades e do próprio rei D. Carlos ninguém o incomodou. D. Miguel II ter-se-á encontrado com Alfredo Keil que por essa altura terá composto um outro hino. Sabe-se também que o príncipe terá mantido correspondência com o compositor.
2. Influenciado pelo fado e pela Marselhesa?
Há dúvidas quanto às influências de Keil nas composição do hino, se foi influenciado pelo fado, pela Marselhesa e pelo hino da Maria da Fonte. Relativamente à influência do fado tenho dúvidas, mas José Osório de Oliveira, em "Psicologia de Portugal e outros ensaios" (1934) garante que Keil "soube, de facto, aproveitar a cadência do fado sem deixar de fazer um hino heróico." Quanto à Marselhesa, facilmente podemos constatar num paralelismo entre os versos “pela pátria lutar” e “contra os canhões” com o “aux armes citoyens” do hino francês. A influência francesa não era estranha à boa sociedade da época e contribuiu para alcançar uma sonoridade grandiloquente.
3. Contra os "bretões"?
Outro mito que corre de boca em boca relaciona-se com uma suposta alteração da letra da canção, onde se lê "contra os canhões marchar, marchar", na letra primitiva seria: "contra os bretões marchar marchar", o mesmo pode ser encontrado na Wikipédia, lendo Jaime Nogueira Pinto, o livro "Nobre Povo - os anos da República", novamente a mesma declaração é feita. Todavia, em nenhuma das edições anteriores a 1910 surge tal referência, nem mesmo nos jornais da época. O historiador Rui Ramos nega terminantemente que os versos "contra os bretões marchar, marchar" constassem na edição original e apenas admite que, talvez, possa ter acontecido em alguma sessão privada e esporádica da qual ele não tem notícia alguma.
A edição disponibilizada pela BND é das mais antigas (creio que será mesmo a primeira) e na letra lê-se: "contra os canhões"...
Talvez a ideia da canção apelando à guerra com a Inglaterra tenha vingado no contexto conhecido em que "A Portugueza" foi composta, não será despiciente indagar que o próprio povo, cantando a marcha patriótica nas ruas, substituísse a palavra "canhões" por "bretões", afinal, este foi um período de exaltações políticas, imediatamente atiçadas pelo ultimato britânico, seguido do 31 de Janeiro (a primeira tentativa para proclamar a república), a época em que Guerra Junqueiro escreve "Finis Patriae", carregado de simbologias antevendo o fim da pátria, também a época em que é criada a efémera "Liga Patriótica do Norte".
4. Hino patriótico e monárquico?
O hino patriótico rapidamente ficou conhecido, mesmo o rei D.Carlos chegou a ouvi-lo, salvo erro na Praça do Campo Pequeno, e conta-se também que a rainha Dona Amélia terá ensinado a canção aos príncipes D. Manuel e D. Luís Filipe.
O certo é que, à época (ainda em 1890) foram impressos e distribuídos em Lisboa e na província vários milhares de exemplares da partitura, permitindo a sua grande difusão. A música tornou-se conhecida desde as agremiações populares, aos teatros, incluindo o S. Carlos, até aos salões das elites, às camadas estudantis e intelectuais republicanas.
Mais tarde os republicanos apropriaram-se da música, como é sabido, e em 1911 é escolhida para hino nacional, sem que o autor da melodia, Alfredo Keil, tivesse feito alguma coisa por isso. Não há nenhum indicio de republicanismo em Keil, e muito menos em Henrique Lopes de Mendonça, o autor da letra. Homem de grande sensibilidade, Keil foi também um exímio pintor, aliás, um dos seus principais compradores era o rei D. Luís (mantinha uma relação próxima à casa de Bragança).
A composição da marcha patriótica derivou de um impulso, de um sentimento explosivo provocado pelo ultimato britânico, tudo o mais foram as circunstâncias que o ditaram, algo que nem o próprio autor da melodia podia adivinhar ou programar. O sentimento patriótico de Keil e Mendonça virou republicano? Seria redutor dizê-lo. Antes criaram um hino para que esta nação antiga não se esqueça do seu passado valoroso, de grandeza e coragem, e que tenha forças para conquistar o futuro.
Daniel Sousa